“Vivem-se tempos de crise”, tornou-se uma frase feita que se introduziu, traduzida em “estados de espírito”, na situação subjectiva (e instável) das massas.
 
Há sentimentos alastrados de pessimismo e de resignação, por vezes de revolta e desespero, alimentados pela instilação de “informação” criadora de conceitos e valores falsificados, de interpretações e pensamento únicos, da ideia de fatalidade e inevitabilidade.


 
Na nossa perspectiva, escorada em base teórica e ideologia bem diferente da que se pretende impor como consensual, a crise é só uma e intrínseca ao funcionamento do sistema capitalista.
O tipo de relações sociais definidoras do modo de produção impõe um funcionamento da economia gerador de contradições que provocam uma crise larvar que tem momentos “de explosão”, ou mais localizados ou mais generalizados.
 
Vive-se um desses momentos; que, sendo histórico, se espalha temporal e espacialmente. E não falta a referência frequente a um outro período que se baliza, numa primeira aproximação, entre 1928 e 1939, assim se dando uma medida da gravidade do tempo que se vive.
 
O capitalismo e a prevalência de “valores” de individualismo, egoísmo, curto prazo
 
Para além da base material, económica, o capitalismo, como formação social, tem também a correspondência de “valores” superstruturais, que confrontam/recuperam “valores” residuais e resistentes de formações sociais anteriores, que combatem “valores” com que se querem conformar (não conformatar…) futuros modos de produção e formações sociais.
 
Desde que os seres humanos se dividiram entre os que possuem e os que não possuem – como os que são proprietários de meios de produção e os que nada têm além da sua força de trabalho –, a relação de forças numa luta de interesses antagónicos (de classe) condiciona e determina o viver da Humanidade e os “valores” prevalecentes.
 
Nos seres humanos coexistem, por um lado, o egoísmo e a busca de satisfação pessoal, da satisfação das necessidades mais elementares aos mais sofisticados luxos, e, por outro lado, a cooperação e a solidariedade que, naturalmente, têm tomado forma, ao longo dos séculos, na divisão do e cooperação no trabalho.
 
Como a nossa “leitura” da História ensina, em capitalismo são os “valores” superstruturais do individualismo e do egoísmo que sobrepõem, esmagando, os “valores” que privilegiam o colectivo em relação ao pessoal, a entre-ajuda em relação à competição sem peias nem “meias medidas”.
 
Em termos de tempo, é o curto prazo que conta, e não espanta que se sobrevalorize o dia de hoje e se adoptem consignas como a quase desesperada e hipócrita de que “a longo prazo todos estaremos mortos”, que serviria, no léxico economicista, para justificar a individual e egoísta busca de “utilidades marginais” e individuais, sempre à custa dos outros, de outros de hoje e de amanhã.
 
 Os “valores” prevalecentes e a acumulação de capital
 
Cada modo de produção tem os seus prevalecentes “valores”, com a superstrutura da formação social a inter-agir sobre a base material
 
Num texto de grande rigor e didactismo, Marx escreveu sobre a economia política e a moral, e insistiu na ideia de que a economia política convive muito bem com a “Dona Moral” e com a prima desta, a “Dona Religião”.
 
Acrescentava, no entanto, que a economia política do capitalismo tem a sua própria moral, regras de comportamento que consagram a acumulação do capital, pregando o ascetismo e a austeridade para quase todos, fechando os olhos a alguns “eleitos”.
 
Evidentemente que, a longo prazo – quando estiverem todos mortos... –, os “quase todos” terão as devidas compensações para os sacrifícios de hoje. Sacrifícios de que os “eleitos” estão dispensados, agora deles colhendo o doce fruto, com os olhos em alvo a anunciar o futuro bem-estar de todos, sempre adiado.
 
Desde que a finança, como a hera, invadiu o quintal da economia, uma única coisa conta: a acumulação do capital-dinheiro. Qualquer empresa, para que capitalista seja e considerada merecedora de sobreviver, terá objectivo social – fornecer luz eléctrica, por exemplo – mas esse objectivo social nada significará, ou até se substituirá, se não objectivar a acumulação de capital dos que nela investiram. Como – segundo exemplo… – na fabricação e comércio de armas (e consumo auto e alter-destruidor).
 
Trata-se, esta abordagem, de “demonização” do capitalismo?
 
Não é assim. Trata-se, sim, de uma “leitura” da História. Que a História vai comprovando.
 
Aliás, a primeira sistematização e divulgação, em manifesto, dessa “leitura”, encontrou, na caracterização do capitalismo, virtudes, não as calando ou escondendo.
 
Como as do estímulo ao desenvolvimento das forças produtivas., sua característica revolucionária, e da configuração dos primórdios de um “mercado mundial”, as duas entre si ligadas, com a referência ao que foi o contributo da odisseia portuguesa da descoberta de caminhos marítimos.
 
Que, como se afirmou propagandisticamente, “abriu mundos ao mundo”, e também fez um autor holandês, em “500 anos de capitalismo”, colocar a referência Vasco da Gama a iniciar um percurso, no final do qual se lhe dá Bill Gates como parceiro.
 
No entanto, sendo uma etapa da História, neste estádio do processo histórico materializado nas relações de produção que identificam o capital, o fruto de trabalho colectivo de gerações foi sendo privatizado, concentrado e centralizado por via da sua apropriação e desproporcionada distribuição.
 
A subalternidade das questões sociais
 
Preterirem-se os objectivos sociais teria de acarretar a subalternidade das questões sociais, tudo subordinado ao objectivo de acumulação de capital sob a forma de dinheiro, enquanto instrumento e meio de acesso à “riqueza das nações” por uma parte (classe) da Humanidade.
 
Não acontece assim, e moderado quando e quanto a relação de forças sociais o consegue concretizar, por “opção moral” (ética ou estética) – por o capitalismo ser “mau”, feio, anti-social… – mas derivado dos “valores” prevalecentes.
 
De individualismo, de competição, de egoísmo, de curto prazo. De destruição.
 
Do mesmo modo (e no mesmo modo) também se menospreza, imolado ao objectivo da acumulação do capital, a defesa da natureza, de que o ser humano é parte, a preservação dos recursos, naturalmente finitos.
 
Na perseguição desse objectivo único, exclusivo, medida de tudo, não se recua perante nada – a não ser face à referida capacidade moderadora imposta na relação de forças sociais –, pois não há correspondentes “valores” de consciência social e ambiental que possam ter efeito morigerador.
 
O capitalismo e as contradições provocadas pelo funcionamento da sua economia
 
No seu funcionamento, a economia capitalista vive em crise larvar, porque assenta na transformação de dinheiro em mercadorias, na criação (pelo trabalho) de valores de uso/troca, na apropriação das mercadorias com trabalho incorporado e na transformação destas em mais dinheiro.
 
E a última metamorfose engulha porque quem tem mais propensão para esta troca foi espoliado da possibilidade de a concretizar. (o que, se intuitivo, levaria páginas a tentar dilucidar).
 
Crises de “sobre-produção”, por excesso de produção/oferta em relação à possibilidade de procura/consumo, ou de “sub-consumo”, por escassez de meios/procura, não em razão de sobre-satisfação de necessidades mas por incapacidade de acesso à oferta/produção.
 
Daí, as “explosões” periódicas.
 
As chamadas “crises”.
 
Quais as “saídas” do capitalismo?
 
Medidas (e apelos manipuladores) ao ascetismo e à austeridade acrescem a margem de exploração, mas agravam as contradições, causas fundas da “explosão”. Adiam, agravando.
 
Recorrer-se à “desmaterialização do dinheiro” possibilita acesso a mais dinheiro, mas fictício, creditício, falso numa palavra, nunca a especulação podendo substituir a exploração.
A sua utilização desmedida provoca “balões” e “bolhas” por vezes incontroláveis, “crises” em cascata.
 
A “saída” mais estabilizadora (!) é a de destruição das forças produtivas, antes de todas a de trabalhadores “a mais” porque consomem sem produzirem ou contribuírem de outras formas para a acumulação de capital, e de outros meios de produção que levem a utilizar capacidade produtiva excedentária ou à criação de novas forças produtivas que substituam as destruídas.
 
Ao longo de séculos a indústria destruidora – de armamento –, tem vindo a ganhar crescente importância, e denunciar o complexo industrial-militar nunca será suficiente. Em próximo artigo, se ilustrará com factos e números.
 
A Paz. “Valor” perene e em risco
 
A História não se repete. Mas pode ensinar.
Na “crise de 29-30” as questões sociais foram subalternizadas, durante a década de 30 radicalizaram-se “saídas” agressivas, racistas, xenófobas, numa espúria massificação do individualismo e do egoísmo, negou-se a existência de classes sociais para impor, brutalmente, o domínio de uma classe.
 
A “crise” de então desembocou na guerra “mundial” de 1939-45, que não foi ainda mais longe na barbárie porque houve luta e resistências heróicas, e dela os “valores” de solidariedade e pela paz saíram reforçados, apesar da corrida aos armamentos e da “guerra fria”.
Na “crise” de hoje não falta o recrudescer de “guerras”, aparentemente localizadas mas em que o Atlântico Norte se estende a todo o planeta, de “guerras de/por recursos”, em nome de “direitos humanos”, contra construídos inimigos e ameaças montadas.
Guerras que não merecem, nenhuma delas, o complemento de “mundial”. (ainda?).
 
A Paz em perigo, a Humanidade em risco!
 
Sérgio Ribeiro